domingo, 7 de maio de 2017

Regionalismo e moralidade (Os Corumbas, de Amando Fontes)


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Não é nenhuma novidade o fato de o regionalismo no Brasil ter conhecido diversas fases independentes. Se, neste sentido, fôssemos traçar um quadro sintético do nosso regionalismo, diríamos que ele conheceu pelo menos quatro fases predominantes: uma fase pré-regionalista ou de um regionalismo mitigado pela expressão romântica (representado, em primeiro plano, por José de Alencar e seguido por Franklin Távora, Bernardo Guimarães e outros); uma fase em que o regionalismo surge como mimese, como mera representação dos costumes e da linguagem regional (representado por figuras do porte de Simðes Lopes Neto, Afonso Arinos, Alcides Maia e outros); uma fase em que o regionalismo emerge mesclado com preocupações sociais, caracterizando por uma forte crítica psico-social (representado por Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e outros); e, finalmente, uma fase em que o regionalismo adquire um estatuto de tendência universalizante, surgindo não como desvio de uma expressão literária “central” e virtualmente urbana, mas como a expressão por excelência de uma determinada Weltanschauung (no nosso caso, representado por Érico Veríssimo e, principalmente, Guimarães Rosa).
Mas cabe ressaltar, nesse quadro feito às pressas e sem maior rigor científico, a presença de alguns autores que, embora tenham sido regionalistas, não se encaixam perfeitamente nessas quatro tendências aqui expostas, muito embora possam ser considerados uma espécie de continuação modificada de uma ou de outra. É exatamente este o caso da obra Os Corumbas (1933), de Amando Fontes, na qual é possível detectar uma espécie de continuidade da terceira tendência aqui apresentada, não apenas por uma questão cronológica, mas antes por uma questão de princípios estéticos: também esta obra é uma espécie original de regionalismo crítico-psicológico, onde não falta a presença marcante da problemática social. E dizemos que se trata de uma alteração dessa tendência talvez por um único e evidente motivo: é que, diferentemente dos principais representantes do nosso regionalismo social e psicológico, Os Corumbas retratam, na verdade, uma sociedade regional onde já é possível perceber a influência marcante da civilização não campesina, isto é, do urbanismo civilizatório, se partirmos evidentemente do princípio de que o regionalismo seria uma espécie de “desvio” da ficção urbana.
Com efeito, o livro de Amando Fontes não é regionalista na acepção mais pura do termo - ou, em outras palavras, não é puramente regionalista. Afirma-se, antes, como uma obra onde o não regionalismo e o regionalismo (dicotomia que, numa esfera rigidamente social e moral, tem sido substituída frequentemente por civilização versus barbárie) digladiam entre si, forjando uma convivência nem sempre pacífica. É por isso que, ao contrário de outros romances de destaque surgidos na década de 1930, Os Corumbas revelam uma espécie de contato pernicioso com a civilização das grandes cidades (no caso, de Aracaju, capital sergipana). Poder-se-ia mesmo dizer que tal romance dá, efetivamente, o passo ensaiado pelas obras mais puramente regionalistas de sua época, a maioria delas finalizando com a intenção ou com a decisão tomada por alguma personagem no sentido de ir ao encontro da civilização urbana, numa autêntica saga do deslocamento migratório. O livro de Amando Fontes concretizaria, assim, aquilo que nos outros livros da época fica apenas na intenção ou na quase realização.
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Sendo um mérito temático, tal fato é também uma falha na concepção do enredo, já que não permite ao autor um tratamento mais convincente (como o fazem os romances consagrados da época) da psicologia das personagens ou dos problemas sociais em que estas se inserem. Acaba pecando, neste sentido, por uma relativa, embora inesperada, superficialidade. De qualquer maneira, o autor explora bastante a dicotomia cidade/campo, onde aquela, em oposição a este, representa a esperança de uma vida melhor. A oposição civilização/barbárie, a que aqui nos referimos, também marca sua presença na trama da narrativa, em que, ironicamente, constata-se uma consciência excessivamente simplista por parte da civilização em relação ao que pode ser tomado, no romance, como barbárie. No final, parte da história acaba por se transformar em puro retoricismo, como na cena em que, concluindo uma discussão sobre as mazelas da classe pobre, o autor afirma:

"O vigário entrou no assunto, invocando a Rerum Novarum. E a conversa generalizou-se, tomou rumos mais amplos, esforçando-se cada um por sustentar suas idéias a respeito da melhor organização social do mundo" (FONTES, 1979, p. 45).

Empregando um estilo que poderíamos chamar, embora imprecisamente, de sincero, chegando à quase rispidez, é o realismo - mais do que o regionalismo - que se revela a cada página do livro. E não um realismo morbidamente descritivo, mas um realismo onde se mesclam, continuamente e com inigualável habilidade, o patético e o poético:

"O enterro, na tarde do outro dia, reuniu muita gente: crianças dos arredores, operárias das duas Fábricas. Algumas trouxeram flores. Flores feias, colhidas nos seus quintais. O caixão era comprido e estreito. Muito simples. Envolto num pano azul, ralo e sem brilho" (FONTES, 1979, p. 53).

Há que se ressaltar, finalmente, como sugere o nosso título, que o regionalismo de Amando Fontes é também, além de realista, “moralista”. A começar pelo fato de o autor retratar uma sociedade rigidamente marcada por valores morais. E até mesmo a própria organização dos episódios pelo autor revela-nos essa natureza do romance, na exata medida em que a partir do momento em que cada um dos filhos do casal Corumba desvia-se de uma ordem moral austeramente estabelecida seu desempenho no romance sofre súbito desgaste: neste sentido, perder-se para a vida mundana é também perder-se para o romance. É por isso que os últimos capítulos da obra revelam um fervoroso embate para salvar a derradeira remanescente (Caçulinha) de uma ordem social moralista; mas com a perda de Caçulinha para o mundo, não restando mais elementos para compor o universo moralizado do romance, este também acaba por findar-se.
Sem querer fazer um julgamento demasiadamente severo do romance em questão (e, portanto, cair no mesmo vício que acabamos de apontar), melhor proveito faria o autor se atentasse também - e, talvez, principalmente - para a nova vida que os filhos "perdidos" dos Corumbas passaram a levar, com o que se tornaram personagens capazes de propiciar um maior aprofundamento psicológico da narrativa.
Nada disso, contudo, tira dessa obra o brilho e o valor estético que ela obteve por mérito e direito, afirmando-se como um de nossos principais romances da década de 30.

Referências

FONTES, Amando. Os Corumbas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1979.


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