Não
é nenhuma novidade o fato de o regionalismo no Brasil ter conhecido diversas
fases independentes. Se, neste sentido, fôssemos traçar um quadro sintético do
nosso regionalismo, diríamos que ele conheceu pelo menos quatro fases
predominantes: uma fase pré-regionalista ou de um regionalismo mitigado pela
expressão romântica (representado, em primeiro plano, por José de Alencar e
seguido por Franklin Távora, Bernardo Guimarães e outros); uma fase em que o
regionalismo surge como mimese, como mera representação dos costumes e da
linguagem regional (representado por figuras do porte de Simðes Lopes Neto,
Afonso Arinos, Alcides Maia e outros); uma fase em que o regionalismo emerge
mesclado com preocupações sociais, caracterizando por uma forte crítica psico-social
(representado por Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e
outros); e, finalmente, uma fase em que o regionalismo adquire um estatuto de
tendência universalizante, surgindo não como desvio de uma expressão literária “central”
e virtualmente urbana, mas como a expressão por excelência de uma determinada Weltanschauung (no nosso caso,
representado por Érico Veríssimo e, principalmente, Guimarães Rosa).
Mas
cabe ressaltar, nesse quadro feito às pressas e sem maior rigor científico, a
presença de alguns autores que, embora tenham sido regionalistas, não se
encaixam perfeitamente nessas quatro tendências aqui expostas, muito embora
possam ser considerados uma espécie de continuação modificada de uma ou de
outra. É exatamente este o caso da obra Os
Corumbas (1933), de Amando Fontes, na qual é possível detectar uma espécie
de continuidade da terceira tendência aqui apresentada, não apenas por uma
questão cronológica, mas antes por uma questão de princípios estéticos: também
esta obra é uma espécie original de regionalismo crítico-psicológico, onde não
falta a presença marcante da problemática social. E dizemos que se trata de uma
alteração dessa tendência talvez por um único e evidente motivo: é que,
diferentemente dos principais representantes do nosso regionalismo social e
psicológico, Os Corumbas retratam, na
verdade, uma sociedade regional onde já é possível perceber a influência
marcante da civilização não campesina, isto é, do urbanismo civilizatório, se partirmos evidentemente do princípio de
que o regionalismo seria uma espécie de “desvio” da ficção urbana.
Com
efeito, o livro de Amando Fontes não é regionalista na acepção mais pura do
termo - ou, em outras palavras, não é puramente regionalista. Afirma-se, antes,
como uma obra onde o não regionalismo e o regionalismo (dicotomia que, numa
esfera rigidamente social e moral, tem sido substituída frequentemente por
civilização versus barbárie)
digladiam entre si, forjando uma convivência nem sempre pacífica. É por isso
que, ao contrário de outros romances de destaque surgidos na década de 1930, Os Corumbas revelam uma espécie de
contato pernicioso com a civilização das grandes cidades (no caso, de Aracaju,
capital sergipana). Poder-se-ia mesmo dizer que tal romance dá, efetivamente, o
passo ensaiado pelas obras mais puramente regionalistas de sua época, a maioria
delas finalizando com a intenção ou com a decisão tomada por alguma personagem
no sentido de ir ao encontro da civilização urbana, numa autêntica saga do
deslocamento migratório. O livro de Amando Fontes concretizaria, assim, aquilo
que nos outros livros da época fica apenas na intenção ou na quase realização.
Sendo
um mérito temático, tal fato é também uma falha na concepção do enredo, já que
não permite ao autor um tratamento mais convincente (como o fazem os romances
consagrados da época) da psicologia das personagens ou dos problemas sociais em
que estas se inserem. Acaba pecando, neste sentido, por uma relativa, embora inesperada,
superficialidade. De qualquer maneira, o autor explora bastante a dicotomia
cidade/campo, onde aquela, em oposição a este, representa a esperança de uma
vida melhor. A oposição civilização/barbárie, a que aqui nos referimos, também
marca sua presença na trama da narrativa, em que, ironicamente, constata-se uma
consciência excessivamente simplista por parte da civilização em relação ao que
pode ser tomado, no romance, como barbárie. No final, parte da história acaba
por se transformar em puro retoricismo, como na cena em que, concluindo uma
discussão sobre as mazelas da classe pobre, o autor afirma:
"O
vigário entrou no assunto, invocando a Rerum Novarum. E a conversa
generalizou-se, tomou rumos mais amplos, esforçando-se cada um por sustentar suas
idéias a respeito da melhor organização social do mundo" (FONTES, 1979, p.
45).
Empregando
um estilo que poderíamos chamar, embora imprecisamente, de sincero, chegando à quase rispidez, é o realismo - mais do que o
regionalismo - que se revela a cada página do livro. E não um realismo
morbidamente descritivo, mas um realismo onde se mesclam, continuamente e com
inigualável habilidade, o patético e o poético:
"O
enterro, na tarde do outro dia, reuniu muita gente: crianças dos arredores,
operárias das duas Fábricas. Algumas trouxeram flores. Flores feias, colhidas
nos seus quintais. O caixão era comprido e estreito. Muito simples. Envolto num
pano azul, ralo e sem brilho" (FONTES, 1979, p. 53).
Há
que se ressaltar, finalmente, como sugere o nosso título, que o regionalismo de
Amando Fontes é também, além de realista, “moralista”. A começar pelo fato de o
autor retratar uma sociedade rigidamente marcada por valores morais. E até
mesmo a própria organização dos episódios pelo autor revela-nos essa natureza
do romance, na exata medida em que a partir do momento em que cada um dos
filhos do casal Corumba desvia-se de uma ordem moral austeramente estabelecida
seu desempenho no romance sofre súbito desgaste: neste sentido, perder-se para
a vida mundana é também perder-se para o romance. É por isso que os últimos
capítulos da obra revelam um fervoroso embate para salvar a derradeira
remanescente (Caçulinha) de uma ordem social moralista; mas com a perda de
Caçulinha para o mundo, não restando mais elementos para compor o universo moralizado do romance, este também acaba
por findar-se.
Sem
querer fazer um julgamento demasiadamente severo do romance em questão (e,
portanto, cair no mesmo vício que acabamos de apontar), melhor proveito faria o
autor se atentasse também - e, talvez, principalmente - para a nova vida que os
filhos "perdidos" dos Corumbas passaram a levar, com o que se
tornaram personagens capazes de propiciar um maior aprofundamento psicológico
da narrativa.
Nada
disso, contudo, tira dessa obra o brilho e o valor estético que ela obteve por
mérito e direito, afirmando-se como um de nossos principais romances da década
de 30.
Referências
FONTES,
Amando. Os Corumbas. Rio de Janeiro,
José Olympio, 1979.