domingo, 7 de maio de 2017

Regionalismo e moralidade (Os Corumbas, de Amando Fontes)


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Não é nenhuma novidade o fato de o regionalismo no Brasil ter conhecido diversas fases independentes. Se, neste sentido, fôssemos traçar um quadro sintético do nosso regionalismo, diríamos que ele conheceu pelo menos quatro fases predominantes: uma fase pré-regionalista ou de um regionalismo mitigado pela expressão romântica (representado, em primeiro plano, por José de Alencar e seguido por Franklin Távora, Bernardo Guimarães e outros); uma fase em que o regionalismo surge como mimese, como mera representação dos costumes e da linguagem regional (representado por figuras do porte de Simðes Lopes Neto, Afonso Arinos, Alcides Maia e outros); uma fase em que o regionalismo emerge mesclado com preocupações sociais, caracterizando por uma forte crítica psico-social (representado por Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e outros); e, finalmente, uma fase em que o regionalismo adquire um estatuto de tendência universalizante, surgindo não como desvio de uma expressão literária “central” e virtualmente urbana, mas como a expressão por excelência de uma determinada Weltanschauung (no nosso caso, representado por Érico Veríssimo e, principalmente, Guimarães Rosa).
Mas cabe ressaltar, nesse quadro feito às pressas e sem maior rigor científico, a presença de alguns autores que, embora tenham sido regionalistas, não se encaixam perfeitamente nessas quatro tendências aqui expostas, muito embora possam ser considerados uma espécie de continuação modificada de uma ou de outra. É exatamente este o caso da obra Os Corumbas (1933), de Amando Fontes, na qual é possível detectar uma espécie de continuidade da terceira tendência aqui apresentada, não apenas por uma questão cronológica, mas antes por uma questão de princípios estéticos: também esta obra é uma espécie original de regionalismo crítico-psicológico, onde não falta a presença marcante da problemática social. E dizemos que se trata de uma alteração dessa tendência talvez por um único e evidente motivo: é que, diferentemente dos principais representantes do nosso regionalismo social e psicológico, Os Corumbas retratam, na verdade, uma sociedade regional onde já é possível perceber a influência marcante da civilização não campesina, isto é, do urbanismo civilizatório, se partirmos evidentemente do princípio de que o regionalismo seria uma espécie de “desvio” da ficção urbana.
Com efeito, o livro de Amando Fontes não é regionalista na acepção mais pura do termo - ou, em outras palavras, não é puramente regionalista. Afirma-se, antes, como uma obra onde o não regionalismo e o regionalismo (dicotomia que, numa esfera rigidamente social e moral, tem sido substituída frequentemente por civilização versus barbárie) digladiam entre si, forjando uma convivência nem sempre pacífica. É por isso que, ao contrário de outros romances de destaque surgidos na década de 1930, Os Corumbas revelam uma espécie de contato pernicioso com a civilização das grandes cidades (no caso, de Aracaju, capital sergipana). Poder-se-ia mesmo dizer que tal romance dá, efetivamente, o passo ensaiado pelas obras mais puramente regionalistas de sua época, a maioria delas finalizando com a intenção ou com a decisão tomada por alguma personagem no sentido de ir ao encontro da civilização urbana, numa autêntica saga do deslocamento migratório. O livro de Amando Fontes concretizaria, assim, aquilo que nos outros livros da época fica apenas na intenção ou na quase realização.
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Sendo um mérito temático, tal fato é também uma falha na concepção do enredo, já que não permite ao autor um tratamento mais convincente (como o fazem os romances consagrados da época) da psicologia das personagens ou dos problemas sociais em que estas se inserem. Acaba pecando, neste sentido, por uma relativa, embora inesperada, superficialidade. De qualquer maneira, o autor explora bastante a dicotomia cidade/campo, onde aquela, em oposição a este, representa a esperança de uma vida melhor. A oposição civilização/barbárie, a que aqui nos referimos, também marca sua presença na trama da narrativa, em que, ironicamente, constata-se uma consciência excessivamente simplista por parte da civilização em relação ao que pode ser tomado, no romance, como barbárie. No final, parte da história acaba por se transformar em puro retoricismo, como na cena em que, concluindo uma discussão sobre as mazelas da classe pobre, o autor afirma:

"O vigário entrou no assunto, invocando a Rerum Novarum. E a conversa generalizou-se, tomou rumos mais amplos, esforçando-se cada um por sustentar suas idéias a respeito da melhor organização social do mundo" (FONTES, 1979, p. 45).

Empregando um estilo que poderíamos chamar, embora imprecisamente, de sincero, chegando à quase rispidez, é o realismo - mais do que o regionalismo - que se revela a cada página do livro. E não um realismo morbidamente descritivo, mas um realismo onde se mesclam, continuamente e com inigualável habilidade, o patético e o poético:

"O enterro, na tarde do outro dia, reuniu muita gente: crianças dos arredores, operárias das duas Fábricas. Algumas trouxeram flores. Flores feias, colhidas nos seus quintais. O caixão era comprido e estreito. Muito simples. Envolto num pano azul, ralo e sem brilho" (FONTES, 1979, p. 53).

Há que se ressaltar, finalmente, como sugere o nosso título, que o regionalismo de Amando Fontes é também, além de realista, “moralista”. A começar pelo fato de o autor retratar uma sociedade rigidamente marcada por valores morais. E até mesmo a própria organização dos episódios pelo autor revela-nos essa natureza do romance, na exata medida em que a partir do momento em que cada um dos filhos do casal Corumba desvia-se de uma ordem moral austeramente estabelecida seu desempenho no romance sofre súbito desgaste: neste sentido, perder-se para a vida mundana é também perder-se para o romance. É por isso que os últimos capítulos da obra revelam um fervoroso embate para salvar a derradeira remanescente (Caçulinha) de uma ordem social moralista; mas com a perda de Caçulinha para o mundo, não restando mais elementos para compor o universo moralizado do romance, este também acaba por findar-se.
Sem querer fazer um julgamento demasiadamente severo do romance em questão (e, portanto, cair no mesmo vício que acabamos de apontar), melhor proveito faria o autor se atentasse também - e, talvez, principalmente - para a nova vida que os filhos "perdidos" dos Corumbas passaram a levar, com o que se tornaram personagens capazes de propiciar um maior aprofundamento psicológico da narrativa.
Nada disso, contudo, tira dessa obra o brilho e o valor estético que ela obteve por mérito e direito, afirmando-se como um de nossos principais romances da década de 30.

Referências

FONTES, Amando. Os Corumbas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1979.


quinta-feira, 27 de abril de 2017

Contos ágeis (Sem vista para o mar, de Carol Rodrigues)



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Data de 2014 o lançamento desse primeiro livro de Carol Rodrigues, agraciado, no ano seguinte, com o consagrado Prêmio Jabuti. Formada em Imagem e Som pela (Universidade Federal de São Carlos) e em Estudos de Performance (pela Universidade de Amsterdam), a autora parece ter imprimido mesmo em seus contos uma singular dinâmica que se verifica tanto na expressão imagética (em especial no cinema) quanto na performática.
São, nesse sentido, contos ágeis, reveladores de uma especial estrutura narrativa em que o que mais importa é o fluxo do contar, a linguagem sem freios, a cena breve e aguda. Enfim, contos escritos ao correr da pena, mas sem os comprometimentos que essa prática pode sugerir ou resultar.
                A linguagem, aliás, é talvez o que mais chama a atenção do leitor, em geral pouco habituado aos contornos de um estilo livre de amarras da sintaxe e da pontuação: linguagem contínua, caudatária de uma tradição “portuguesa” que tem no fluxo de consciência sua principal marca (de Clarice Lispector a Valter Hugo Mae). Trata-se, contudo, de um fluxo de consciência expresso em terceira pessoa, o que não é comum... Chega-se, assim, a um estilo singular, em que o narrador e o narrado parecem caminhar lado a lado por entre os meandros da própria narrativa. Em suma, o que se percebe da leitura de Sem vista para o mar é a constância de um estilo performático, marcado pela agilidade, o que confere aos contos um ritmo impressionantemente dinâmico.
Do ponto de vista do conteúdo, a autora elege temas polêmicos, retratados, contudo, sob o prisma da sensibilidade poética, em que a crítica dura e explícita é substituída por uma mais sutil e sugestiva. A autora, assim, capta o cotidiano em pequenos flashs tomados à frio, repentinamente, o que faz jus ao subtítulo contos de fuga.
                Um exemplo cabal desse modo de narrar é seu conto “Um homem prudente”, já premiado anteriormente e que faz jus a toda essa dinâmica acima destacada: a narrativa segue o ritmo da viagem de caminhão ali representada literariamente; o fumo mascado, a lembrança da prisão, o coração de pelúcia vermelha balançando ao sabor das imperfeições da estrada... Num instante, emerge da conversa sem compromisso um triângulo amoroso inesperado – algo rude, algo inusitado: engolir o seco, bater no fígado, barrar a naúsea! E sem final feliz.
                Contos de fuga!


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quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Comentários sobre "A Máquina do Mundo" de Drummond (Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade)


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            Há exatos trinta anos após seu lamentado falecimento, Carlos Drummond de Andrade é hoje um dos poetas mais mais estudados - e admirados! - da literatura brasileira...
            Sua poesia estende-se por um vasto período de tempo e por uma interminável gama de temas e motivos literários, sem nunca perder o tom lírico, muitas vezes crítico, muitas vezes lisonjeiro. Talvez o melhor qualificativo para sua poesia tenha sido dato por Davi Arrigucci, que, num estudo definitivo, caracterizou-a como sendo marcada por um denso lirismo meditativo (ARRIGUCCI, 2002).
            Sua invejável maestria pode ser comprovada em um dos mais instigantes e contundentes poemas, fonte inesgotável de reflexão humana e fruição estética: "A Máquina do Mundo", pertencente ao livro Claro Enigma (1951) e que, apenas a título de curiosidade, já foi eleito, por um conjunto de críticos e escritores, "o melhor poema brasileiro de todos os tempos" (FOLHA DE SÃO PAULO, 2000, p. 16).
                   A ideia de Máquina do Mundo - título e tema principal do poema - não é nova na literatura: refere-se, resumidamente, ao sistema cósmico do mundo, ao modo como ele funciona e a tudo o que ele rege e congrega. Na ciência antiga, medieval e renascentista, ela foi estudada - no campo da astronomia e da astrofísica - por nomes como os do grego Cláudio Ptolemeu (90-168), em sua obra Almagesto; pelo escocês Johannes de Sacrobosco (ca. 1195-ca.1256), com seu Tratado da esfera; e pelo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), na obra Da revolução de esferas celestes.
            Na literatura em língua portuguesa, a Máquina do Mundo foi magistralmente apresentada no Canto X de Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões. No Brasil, o tema aparece em escritores diversos, seja num Lima Barreto, no episódio em que Augusto Machado, protagonista do romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), observa do alto da cidade, num tom pessimista e amargurado, o mar, "vendo"-o estender-se por todo o globo terrestre:

"Alonguei a vista por elle [o mar] afora, desusando pela superfície immensamente lisa. Surprehendi-o quando beijava os gêlos do polo, quando afagava as praias da Europa, quando recordava as costas da Ásia e recebia os grandes rios da África. Vi a índia religiosa, vi o Egypto enigmático, vi a China hieratica, as novas terras da Oceania e todja a Europa abracei num pensamento, com a sua civilisação grandiosa e desgraçada, fascinadora, apezar de julgal-a hostil. E, depois de tão grande passeio, minha alma voltou a mim mesmo, certificando-me de que, aqui como naquelles lugares, era, ora a mais, ora a menos. E me puz a pensar que sobre a convexidade livre do planeta que me fez, não tinha um lugar, um canto, uma ilha, onde pudesse viver plenamente, livremente. Olhei o mar de novo. Boiavam sargaços, balouçando-se nas ondas, indo de um para outro lado, indifferentes, á mercê dos movimentos caprichosos do abysmo. Felizes! (BARRETO, 1919, p. 146);

seja num Machado de Assis, quando Brás Cubas - nas Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) -, tomado por intenso delírio, é arrebatado por um hipopótamo ao cume de uma montanha e "vê" passar, diante de seus olhos atônitos, agora num tom cínico e irônico, todo o espetáculo da história do homem e da terra (ASSIS, 2001).
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            Contemporaneamente, como sugerimos, é no poema "A máquina do Mundo" de Drummond que este motivo literário ressurge em toda sua beleza estética e profundidade reflexiva, numa leitura que busca conciliar a grandeza do empreendimento divino e a fragilidade humana diante da engrenagem fatídica do Destino. Vejamos o poema por inteiro:



"E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas".
(ANDRADE, 2008,  p. 281-285)



            Desde o início, verifica-se a intenção primeira do poeta: revelar ao leitor o "funcionamento" do universo, seu mecanismo obscuro que se desvela, seguindo uma ótica estritamente pessoal. Máquina, aqui, é mecâ­nica e enigma...
               As três primeiras estrofes (que formam, no seu conjunto, um único período) tratam, assim, da abertura do mundo e re­velação do eu-poético: a princípio, o mundo encontra-se fe­chado - vale dizer, o enigma ainda não fôra revelado ao poeta -, donde ressume um imperativo sentido de negativi­dade: a estrada é pedregosa, o sino possui um som rouco, o som dos sapatos do poeta é seco, o céu apresenta-se numa coloração plúmbea e o próprio ser encontra-se desenganado. O que está fechado é oculto; e o oculto é negativo: há a lentidão (passos pausados, aves pairando lentamente); há a escuridão, a enfatizar o sentido de fechado/oculto ("fecho da tarde", "céu de chumbo", "escuridão maior"); há, enfim, a dureza (estrada pedregosa, céu de chumbo). Tudo, portanto, conduz o leitor a uma atmosfera de encerramento completo, abso­luto. As imagens pesam, como a sufocá-lo por completo. Daí a necessidade de abertura, de revelação, de epifania.
            Finalmente, a Máquina do Mundo se revela: abre-se subita­mente às vistas do poeta. Não é um abrir-se calmo, previsto - antes, trata-se de um romper abrupto (embora silencioso), diante da manifesta esquivança do poeta. O enigma será revelado!...
            Têm-se, em seguida, duas aberturas consecutivas: a pri­meira, exposta nas três próximas estrofes; e a segunda, ex­posta nas cinco outras. Logo na primeira abertura - epifâ­nica, "maravilhosa" -, a Máquina do Mundo se revela pura, ma­jestosa e circunspecta. Em suma, trata-se de uma imagem mí­tica do universo e de sua mecânica. O eu-poético, por sua vez, como contraste ao "maravilhoso" e ao fantástico, revela-se decadente: as pupilas gastas, a mente exausta, os senti­dos perdidos. A Máquina do Mundo é mítica, e a realidade onde o eu habita manifesta-se em sua forma mais ínfima. Em outros termos, há uma flagrante oposição entre a Máquina e o eu, que se traduz numa oposição direta entre o mundo mítico ("maravilhoso") e o mundo real (árido, enfermo).
            Uma segunda abertura faz-se necessária. Nesta, repetem-se elementos presentes na primeira: a relutância do eu, diante da maravilha mítica; a pureza da máquina, em oposição à enfermidade do eu-poético; e a ênfase no caráter mítico da Máquina ("natureza mítica das coisas").
            As quatro próximas estrofes apresentam a "fala" da Máquina, o discurso do enigma revelado. Há uma exortação para que os sentimentos do poeta se abram, tal como ocorrera com a pró­pria Máquina do Mundo: um apelo para a abertura e para a ma­nifestação sinestésica do poeta. A Máquina, nesta parte do poema, reafirma ainda mais sua natureza mítica: ela é su­blime, formidável, gênese de tudo. As próximas estrofes tratam da revelação em si mesma, o auge da abertura e do des­vendamento do enigma: tudo se mostra aos olhos atônitos do poeta. A mecânica atinge a totalidade!
            Mas o poeta recusa o desvendamento, e as próximas estrofes marcam o distanciamento do poeta. O eu re­luta ainda mais em aceitar a revelação, desaparecendo até mesmo o artifício da sinestesia. Finalmente, com o fechamento da Máquina, atinge-se o círculo perfeito: as primeiras estrofes são retomadas, o eu read­quire sua aura negativa e tudo volta a ficar como antes. O poeta segue vagaroso, "de mãos pensas".
            Em "A Máquina do Mundo", Drummond nos apresenta uma visão mítica, mas ao mesmo tempo radical, do mundo e dos seres que o habitam. O homem, joguete do Destino, avança e recua diante do "mistério", jamais indiferente a ele. Analisando o que chama de poética da interrupção em Drummond, Reynaldo Damazio lembra que “a interrupção pode ser entendida como princípio ético-estético, ou núcleo significante elementar, do que há de mais próprio e intenso, e válido para a posteridade, na poesia de Drummond” (DAMAZIO, 2002, p. 50). Com efeito, em "A Máquina do Mundo" esse efeito ético-estético atinge - ao lado de poemas como "No meio do caminho", “Áporo” e “Procura da poesia” - sua expressão mais condensada. Isso talvez resulte, finalmente, daquele fundo sentimento de derrota da ilusão, que Luís Augusto Fischer acusa neste mesmo poema do bardo mineiro, o que representaria, na sua acepção, nosso próprio jeito de ser (FISCHER, 2002).
            Poema síntese da poética drummondiana, "A Máquina do Mundo" revela-nos (e revela-se!) como o ponto máximo de todas as epifanias possíveis, inclusive a do ato poético, desvelador do eu mais obscuro de cada um de nós: revelação da existência universal, redenção da poesia...


Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro, Record, 2008.
ARRIGUCCI, Davi. Coração Partido. Uma Análise da Poesia Reflexiva de Drummond. São Paulo, Cosac & Naify, 2002
ASSIS, Machado de . Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo, Ateliê, 2001.
BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo, Revista do Brasil, 1919.
DAMAZIO, Reynaldo (org.). Drummond Revisitado. São Paulo, Unimarco, 2002.  
FISCHER, Luís Augusto. "A Máquina Recusada". In: CHAVES, Flávio Loureiro (org.). Leituras de Drummond. Caxias do Sul, Educs, 200, p. 111-126.

FOLHA DE SÃO PAULO. "A máquina melancólica", Caderno Mais, São Paulo, 2000, p. 16-17. (http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2000/01/02/72/)

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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A Filosofia da Morbidez (Exaltação, de Albertina Bertha)

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Ao lado de Gonzaga Duque e Hilário Tácito, Albertina Bertha emerge como uma das mais originais romancistas de nossa tropical Belle Époque, sobretudo com um romance que, sem ser um primor em termos de realização estética, afirma-se como obra de inesperada originalidade: Exaltação (1916).
Contrariamente aos dois romancistas citados, o cacofônico nome de Albertina Bertha liga-se de modo um tanto oblíquo ao movimento academicista que vigorou na passagem do século XIX para o XX, em especial pela forma em que o romance é moldado - relativamente rígido, forjado por meio de uma linguagem castiça, sem desvios de prosódia ou gramática, com um apurado rigor linguístico. Isso apesar da densidade poética de sua linguagem, o que faz dele um dos mais “líricos” da época, levando um romancista e crítico rigoroso como Lima Barreto a considerá-lo um autêntico poema em prosa (BARRETO, 1956). No que se refere aos temas e motivos presentes na obra, Arbertina Bertha procurou inovar em alguns sentidos, abordando, por exemplo, com veemência e coragem, a temática do papel desempenhado pela mulher na sociedade. Chega a colocar sob suspeição o casamento, uma das tradições sociais e familiares mais intocáveis na época, com a ousadia que só encontraríamos - e, mesmo assim, limitadamente - numa Júlia Lopes de Almeida (LOPES, 1989) ou numa Carmen Dolores (LOPES, 1991).
Mas sua relevância fica mesmo por conta da filosofia mórbida, decadente, nietzschiana de que Exaltação é dotado. Com efeito, recebendo influência direta do pessimismo de Nietzsche, Albertina Bertha esmera-se em fazer de suas personagens seres psicologicamente decadente, marcados por um temperamento nervoso, por uma inteligência mordaz, por uma índole febril. Nesse sentido, sua morbidez tem pouco de enfermiço e corrupto, e muito de um mundanismo blasé. Trata-se, como afirma a própria autora, de uma morbidez lírica, atestada por esta descrição da protagonista do romance:

“quanta vez elle lhe não surprehendera, em tardes calidas, olhares obliquos, esses olhares que têm o gesto das plantas, dos elementos, das coisas que fogem, olhares que têm integralidade, lucidez ardente, clamor desesperado, gritos silenciosos de um determinismo implacavel [...] E, na sua meninice, a fascinação morbida para com as coisas mortas, a volupia funebre que a agitava, ao enterrar os insectos, as bonecas quebradas” (BERTHA, 1918, p. 69);

ou por esta passagem em que ela fala de si mesma:

“adoro a paz, a solidão, as coisas estranhas [...] Rio-me muito, digo tolices; mas tambem tenho melancolias, que me roem as proprias fontes da existencia; é-me um mal ingenito” (BERTHA, 1918, p. 83).

De fato, trata-se de uma personalidade incomum, cuja principal característica é certa disponibilidade para com uma existência morbígena, introspectiva, afeita a uma espécie de ultra-romantismo decadente. Apesar disso, Exaltação não deixa de ser um romance de "ideias" existencialistas, tudo conformado por uma uma insólita perscrutação do eu-profundo, o que faz do romance uma obra que se situa num meio-termo entre os psicologismos bourgetiano de um Coelho Neto e fatalista de um Gonzaga Duque.
Curiosamente, esse excessivo psicologismo de que padece o romance, aliado à filosofia mórbida que o conforma, não encobriram uma de suas principais virtudes: o tratamento diferenciado dado à temática da libertação feminina. Numa época em que a mulher padecia de limitações nos mais elementares diretos, Albertina Bertha toma as dores da minoria de que fazia parte e coloca sob suspeição todos os mais empedernidos preconceitos em relação à mulher, vigentes na época. Assim, suas opiniões deveriam soar de modo incômodo aos ouvidos dos guardiões das tradições familiares, fazendo de sua obra, algumas vezes, um verdadeiro libelo feminista em favor dos direitos da mulher, ainda que tudo isso estivesse envolto por uma delicada roupagem decadentista.



Referências

BARRETO, Lima. Correspondência. Tomo I. São Paulo, Brasiliense, 1956.
BERTHA, Albertina. Exaltação. Rio de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos, 1918.
LOPES, Maria Angélica. “Júlia Lopes de Almeida e o trabalho feminino na burguesia”. Luso-Brazilian Review, Wisconsin, Vol. 26, No. 01: 45-57, 1989.
_____. “O crime da Galeria Crystal, em 1909: a jornalista como árbitro”. Travessia, Florianópolis, No. 23: 167-176, 1991.


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