Há exatos trinta anos após seu
lamentado falecimento, Carlos Drummond de Andrade é hoje um dos poetas mais mais
estudados - e admirados! - da literatura brasileira...
Sua poesia estende-se por um vasto
período de tempo e por uma interminável gama de temas e motivos literários, sem
nunca perder o tom lírico, muitas vezes crítico, muitas vezes lisonjeiro.
Talvez o melhor qualificativo para sua poesia tenha sido dato por Davi
Arrigucci, que, num estudo definitivo, caracterizou-a como sendo marcada por um
denso lirismo meditativo (ARRIGUCCI,
2002).
Sua invejável maestria pode ser
comprovada em um dos mais instigantes e contundentes poemas, fonte inesgotável
de reflexão humana e fruição estética: "A Máquina do Mundo",
pertencente ao livro Claro Enigma (1951) e que, apenas a título de curiosidade,
já foi eleito, por um conjunto de críticos e escritores, "o melhor poema brasileiro
de todos os tempos" (FOLHA DE SÃO PAULO, 2000, p. 16).
A ideia de Máquina do Mundo - título
e tema principal do poema - não é nova na literatura: refere-se, resumidamente,
ao sistema cósmico do mundo, ao modo como ele funciona e a tudo o que ele rege
e congrega. Na ciência antiga, medieval e renascentista, ela foi estudada - no
campo da astronomia e da astrofísica - por nomes como os do grego Cláudio
Ptolemeu (90-168), em sua obra Almagesto; pelo escocês Johannes de Sacrobosco
(ca. 1195-ca.1256), com seu Tratado da esfera; e pelo polonês Nicolau Copérnico
(1473-1543), na obra Da revolução de esferas celestes.
Na literatura em língua portuguesa,
a Máquina do Mundo foi magistralmente apresentada no Canto X de Os Lusíadas
(1572), de Luís de Camões. No Brasil, o tema aparece em escritores diversos,
seja num Lima Barreto, no episódio em que Augusto Machado, protagonista do
romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), observa do alto da cidade,
num tom pessimista e amargurado, o mar, "vendo"-o estender-se por
todo o globo terrestre:
"Alonguei a
vista por elle [o mar] afora, desusando pela superfície immensamente lisa.
Surprehendi-o quando beijava os gêlos do polo, quando afagava as praias da
Europa, quando recordava as costas da Ásia e recebia os grandes rios da África.
Vi a índia religiosa, vi o Egypto enigmático, vi a China hieratica, as novas
terras da Oceania e todja a Europa abracei num pensamento, com a sua
civilisação grandiosa e desgraçada, fascinadora, apezar de julgal-a hostil. E,
depois de tão grande passeio, minha alma voltou a mim mesmo, certificando-me de
que, aqui como naquelles lugares, era, ora a mais, ora a menos. E me puz a
pensar que sobre a convexidade livre do planeta que me fez, não tinha um lugar,
um canto, uma ilha, onde pudesse viver plenamente, livremente. Olhei o mar de
novo. Boiavam sargaços, balouçando-se nas ondas, indo de um para outro lado,
indifferentes, á mercê dos movimentos caprichosos do abysmo. Felizes! (BARRETO,
1919, p. 146);
seja
num Machado de Assis, quando Brás Cubas - nas Memórias Póstumas de Brás Cubas
(1881) -, tomado por intenso delírio, é arrebatado por um hipopótamo ao cume de
uma montanha e "vê" passar, diante de seus olhos atônitos, agora num
tom cínico e irônico, todo o espetáculo da história do homem e da terra (ASSIS,
2001).
Contemporaneamente, como sugerimos,
é no poema "A máquina do Mundo" de Drummond que este motivo literário
ressurge em toda sua beleza estética e profundidade reflexiva, numa leitura que
busca conciliar a grandeza do empreendimento divino e a fragilidade humana
diante da engrenagem fatídica do Destino. Vejamos o poema por inteiro:
"E como eu
palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao
som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se
fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do
mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se
majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas
gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma
realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma
pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria
recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a
todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse,
embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém,
noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito
e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara,
ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total
explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a
pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas
pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância
superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define
o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso
dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo
original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos
deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se
apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu
relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais
mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas
crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos
caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a
comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas
abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos,
incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais
estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas".
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas".
(ANDRADE, 2008, p. 281-285)
Desde o início, verifica-se a
intenção primeira do poeta: revelar ao leitor o "funcionamento" do
universo, seu mecanismo obscuro que se desvela, seguindo uma ótica estritamente
pessoal. Máquina, aqui, é mecânica e enigma...
As três primeiras estrofes (que
formam, no seu conjunto, um único período) tratam, assim, da abertura do mundo
e revelação do eu-poético: a princípio, o mundo encontra-se fechado - vale
dizer, o enigma ainda não fôra revelado ao poeta -, donde ressume um imperativo
sentido de negatividade: a estrada é pedregosa, o sino possui um som rouco, o
som dos sapatos do poeta é seco, o céu apresenta-se numa coloração plúmbea e o
próprio ser encontra-se desenganado. O que está fechado é oculto; e o oculto é
negativo: há a lentidão (passos pausados, aves pairando lentamente); há a
escuridão, a enfatizar o sentido de fechado/oculto ("fecho da tarde",
"céu de chumbo", "escuridão maior"); há, enfim, a dureza
(estrada pedregosa, céu de chumbo). Tudo, portanto, conduz o leitor a uma
atmosfera de encerramento completo, absoluto. As imagens pesam, como a sufocá-lo
por completo. Daí a necessidade de abertura, de revelação, de epifania.
Finalmente, a Máquina do Mundo se
revela: abre-se subitamente às vistas do poeta. Não é um abrir-se calmo,
previsto - antes, trata-se de um romper abrupto (embora silencioso), diante da
manifesta esquivança do poeta. O enigma será revelado!...
Têm-se, em seguida, duas aberturas
consecutivas: a primeira, exposta nas três próximas estrofes; e a segunda, exposta
nas cinco outras. Logo na primeira abertura - epifânica, "maravilhosa"
-, a Máquina do Mundo se revela pura, majestosa e circunspecta. Em suma,
trata-se de uma imagem mítica do universo e de sua mecânica. O eu-poético, por
sua vez, como contraste ao "maravilhoso" e ao fantástico, revela-se
decadente: as pupilas gastas, a mente exausta, os sentidos perdidos. A Máquina
do Mundo é mítica, e a realidade onde o eu habita manifesta-se em sua forma mais
ínfima. Em outros termos, há uma flagrante oposição entre a Máquina e o eu, que
se traduz numa oposição direta entre o mundo mítico ("maravilhoso") e
o mundo real (árido, enfermo).
Uma segunda abertura faz-se
necessária. Nesta, repetem-se elementos presentes na primeira: a relutância do
eu, diante da maravilha mítica; a pureza da máquina, em oposição à enfermidade
do eu-poético; e a ênfase no caráter mítico da Máquina ("natureza mítica
das coisas").
As quatro próximas estrofes
apresentam a "fala" da Máquina, o discurso do enigma revelado. Há uma
exortação para que os sentimentos do poeta se abram, tal como ocorrera com a
própria Máquina do Mundo: um apelo para a abertura e para a manifestação
sinestésica do poeta. A Máquina, nesta parte do poema, reafirma ainda mais sua
natureza mítica: ela é sublime, formidável, gênese de tudo. As próximas
estrofes tratam da revelação em si mesma, o auge da abertura e do desvendamento
do enigma: tudo se mostra aos olhos
atônitos do poeta. A mecânica atinge a totalidade!
Mas o poeta recusa o desvendamento,
e as próximas estrofes marcam o distanciamento do poeta. O eu reluta ainda
mais em aceitar a revelação, desaparecendo até mesmo o artifício da sinestesia.
Finalmente, com o fechamento da Máquina, atinge-se o círculo perfeito: as
primeiras estrofes são retomadas, o eu readquire sua aura negativa e tudo
volta a ficar como antes. O poeta segue vagaroso, "de mãos pensas".
Em "A Máquina do Mundo",
Drummond nos apresenta uma visão mítica, mas ao mesmo tempo radical, do mundo e
dos seres que o habitam. O homem, joguete do Destino, avança e recua diante do "mistério",
jamais indiferente a ele. Analisando o que chama de poética da interrupção em Drummond, Reynaldo Damazio lembra que “a interrupção pode ser entendida como
princípio ético-estético, ou núcleo significante elementar, do que há de mais
próprio e intenso, e válido para a posteridade, na poesia de Drummond” (DAMAZIO,
2002, p. 50). Com efeito, em "A Máquina do Mundo" esse efeito
ético-estético atinge - ao lado de poemas como "No meio do caminho", “Áporo”
e “Procura da poesia” - sua expressão mais condensada. Isso talvez resulte,
finalmente, daquele fundo sentimento de derrota da ilusão, que Luís Augusto
Fischer acusa neste mesmo poema do bardo mineiro, o que representaria, na sua
acepção, nosso próprio jeito de ser (FISCHER, 2002).
Poema síntese da poética
drummondiana, "A Máquina do Mundo" revela-nos (e revela-se!) como o ponto
máximo de todas as epifanias possíveis, inclusive a do ato poético, desvelador do
eu mais obscuro de cada um de nós: revelação da existência universal, redenção
da poesia...
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia
Poética. Rio de Janeiro, Record, 2008.
ARRIGUCCI, Davi. Coração Partido. Uma Análise
da Poesia Reflexiva de Drummond. São Paulo, Cosac & Naify, 2002
ASSIS, Machado de . Memórias Póstumas de Brás
Cubas. São Paulo, Ateliê, 2001.
BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga
de Sá. São Paulo, Revista do Brasil, 1919.
DAMAZIO, Reynaldo (org.). Drummond
Revisitado. São Paulo, Unimarco, 2002.
FISCHER, Luís Augusto. "A Máquina
Recusada". In: CHAVES, Flávio Loureiro (org.). Leituras de Drummond.
Caxias do Sul, Educs, 200, p. 111-126.
FOLHA DE SÃO PAULO. "A máquina
melancólica", Caderno Mais, São Paulo, 2000, p. 16-17.
(http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2000/01/02/72/)
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